03 junho, 2009

Vera Ferreira responde a 10 questões


Como colaboradora deste blog, a Dra. Vera Ferreira, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, enviou-nos, com o pedido de publicação, a resposta a 10 questões sobre a Piação do Ninhou, que lhe foram colocadas, via e-mail, pelo Snr. Eng. Vítor Coelho da Silva, editor do site Minderico.com.
São questões e respostas muito interessantes que nos ajundam a compreender melhor este nosso grande património cultural.

1 – Nas semanas que já leva de estadia em Minde, sente que continua o interesse pelo seu trabalho?

No conjunto estive cerca de 8 semanas em Minde e o que posso dizer é que o interesse pelo projecto de documentação do minderico não só se manteve como aumentou continuamente.

2 – Quantos alunos, jovens e adultos frequentam as aulas da Piação do Ninhou? Sente que os alunos memorizam rapidamente? Tem havido desistências?

Ao todo são cerca de 80-90 alunos, tendo este número vindo a aumentar com a continuação das aulas. Desistências não tem havido. As pessoas estão extremamente empenhadas na aprendizagem do minderico porque se consciencializaram da sua importância enquanto elemento de identificação social e cultural, além da riqueza patrimonial a ele associada.

Quanto às capacidades de memorização dos diversos alunos é difícil tecer generalizações nesse sentido dado que cada aluno é um aluno, com capacidades e especificidades cognitivas individuais. Seria acima de tudo errado relacionar uma memorização rápida com uma aprendizagem bem sucedida e eficaz. Mais importante que a memorização é a compreensão. O que posso constatar é que os alunos perceberam e dominaram rapidamente nas estruturas e construções do minderico e isso sim é um sinal de sucesso. Importa salientar também que a maioria dos alunos que frequentam as aulas são falantes passivos (alguns deles activos) do minderico. Por isso, não estamos perante aulas de aprendizagem de uma língua estrangeira mas de aulas para activar e pôr em prática um conhecimento passivo.

3 – Há muitos anos coligi o dicionário de Português para a Piação do Ninhou que, juntamente com trabalho idêntico realizado pelo Cid Manata Pires, deu origem ao anterior livro azul, tarefa coordenada pelo Prof. Abílio Martins. Nessa altura, se bem me lembro, haviam cerca de 1.000 vocábulos. Nas suas entrevistas e investigações, deu conta de existirem mais vocábulos, não registados em livro?

Sim, nas entrevistas e pesquisas que efectuei encontrei de facto muitos termos não documentados nos dicionários até agora existentes.

4 – Acha pertinente a criação (invenção) de novos vocábulos, para complementar os já existentes? Em caso afirmativo, quem deverão ser as pessoas a encetar esse trabalho?

Eu não lhe chamaria criação e muito menos invenção de novos vocábulos mas sim desenvolvimento natural da língua, tal como aconteceu com o português e todas as línguas do mundo. As línguas não surgem com um vocabulário fixo e determinado. A parte lexical de uma língua (e é assim que deveremos ver o minderico) está em constante evolução para uma melhor adaptação à realidade também ela em constante mudança. Para o desenvolvimento natural do léxico de que falava, as línguas têm vários “métodos” à sua disposição (empréstimo com ou sem adaptação fonética, tradução, metáfora, metonímia, etc.). Pensemos por exemplo no surgimento do lexema “internet” ou “computador” no português. Daí me parecer pouco científico falar-se de invenção. O próprio Vítor Silva refere num dos seus posts de 12/12/2001 no Portal Minderico que “Outros termos estão permanentemente a surgir, já que o Linguajar Típico de Minde, como aliás qualquer língua ou dialecto, está em constante evolução e adaptação” (http://www.minderico.com/minderico/artigo.asp?cod_artigo=123094).

O surgimento desses novos vocábulos aparece associado à utilização da língua no seu dia-a-dia, ou seja são os seus falantes que “determinam” o desenvolvimento lexical. Penso que seria incorrecto ter um grupo escolhido e específico de pessoas a decidir, ou aí seria melhor dizer “a inventar”, novos vocábulos porque isso significaria tirar a língua dos seus contextos naturais e colocá-la numa situação artificial, ou seja, isso significaria a imposição de algo vindo de fora sobre a própria língua. Quem “faz” a língua são os seus falantes, com as suas idiossincrasias.

Esse trabalho de desenvolvimento lexical tem sido interactivo e acima de tudo comunicativo como se pode constatar nas aulas de minderico, nas quais possíveis novos termos, ditados pela necessidade, são discutidos por todos sem nunca nos esquecermos das estruturas de base características do minderico. O que pude observar é que esses novos termos, consciente ou na maioria das vezes inconscientemente, seguem na íntegra as características tipológicas do minderico.

Neste sentido seria importante também uma certa reflexão acerca do surgimento do minderico: também aí não houve uma “comissão” que determinou que termos deveriam fazer parte do minderico. O minderico é caracterizado exactamente pela espontaneidade vocabular e essa deve ser preservada. Além disso, uma das características principais do minderico é a perífrase (a descrição). Dizer que o minderico não tem um lexema para o conceito x ou para y é de certa forma incorrecto ou uma observação muito agarrada ao português (neste caso), porque na verdade o minderico descreve o conceito x ou y por meio de perífrases (por exemplo “gambiar a do pinto lopes” = “escrever”), usando os lexemas que tem ao seu dispor; isso é comum em várias línguas do mundo. Para analisarmos e estudarmos o minderico temos de nos abstrair do português e não tê-lo sempre como “modelo” ou base argumentativa, isto porque o minderico é uma realidade linguística por si só.

A existência de comissões para determinação de vocábulos novos ou para “purificação” de vocábulos existentes é de facto uma realidade em algumas comunidades linguísticas (como na França por exemplo) mas a estas comissões está sempre associada uma determinada atitude política (nacional e linguística) de carácter purista e normativo que, na minha opinião, acaba por ser contraditória ao desenvolvimento natural da língua. Mais importante que isso é, para mim, a existência de uma comunidade de falantes com boa fluência na, conhecimento da e gosto pelo própria língua.

5 – Que critérios deverão ser usados?

Como já referi na pergunta anterior, penso que o surgimento de novos termos não deve ser forçado mas sim seguir um desenvolvimento natural. Neste sentido falar de critérios específicos torna-se contraditório. Porém, todas as línguas relevam determinadas tendências no desenvolvimento dos seus vocabulários e o mesmo acontece no minderico. Desta forma deve-se acima de tudo ter em conta essas tendências no minderico que se reflectem nas suas estruturas internas e nas suas características semânticas. Por exemplo o minderico no seu léxico recorre frequentemente ao uso de metáforas, metonímias de várias bases, perífrases, elipses, etc..

6 – Quais os critérios técnicos que levam a Drª Vera a considerar que a Piação do Ninhou é uma língua e não um mero calão?

Como já tive oportunidade de referir várias vezes, o minderico surgiu de facto como um sociolecto (mais vulgarmente designado por “calão”), ou seja, uma variedade linguística usada por um determinado grupo social. Porém, o minderico ultrapassou em muito as barreiras do que se designa por sociolecto ao tornar-se, numa perspectiva diacrónica, o meio de comunicação por excelência em Minde. Se inicialmente o minderico era usado apenas pelos produtores e vendedores de mantas e só no nas feiras, rapidamente passou a ser usado por todos os grupos sociais e profissionais da comunidade minderica e nos mais variados contextos de utilização, sendo inclusive transmitido de pais para filhos. Estas características afastam o minderico do conceito de “calão”.

Antes de me pronunciar acerca do conceito de língua ou, mais concretamente, à classificação do minderico enquanto língua, importa salientar que para não existem factores ou critérios pré-definidos, 100% infalíveis e usados para qualquer situação, mas sim e apenas tendências de acordo com o conhecimento que se tem das línguas do mundo. Além de que, considerar ou não uma variante linguística como uma língua é também (e acima de tudo) um acto político.

Vejamos por exemplo alguns dos factores que aproximam o minderico do conceito de língua:

a) o facto do minderico se ter desenvolvido no meio de comunicação por excelência dentro da comunidade minderica (e não apenas característica de um grupo específico);

b) a não inteligibilidade entre falantes de minderico e de português (é mais fácil para um falante de português entender o espanhol do que o minderico);

c) a identificação (socio-cultural) dos mindericos com o minderico;

d) a forma como a comunidade em geral e os falantes em particular perspectivam a variante que falam (como sendo diferente do português);

e) a transmissão geracional verificada pelo menos até aos anos 70 do século passado .

É nesta perspectiva (e não com base em conceitos como calão, dialecto e/ou sociolecto) que o minderico deve ser entendido, analisado e devidamente apoiado.

7 – Conseguiu já descobrir em que data (século) terá aparecido esta língua, quais os grupos sociais que lhe deram origem, quem a divulgou ao longo do tempo e o porquê de em meados do século passado ter caído em desuso?

Pelas fontes que tive oportunidade de investigar até ao momento (apesar de ter consciência do trabalho que ainda tem de ser feito), os primeiros registos escritos (em minderico ou sobre o minderico) remontam aos finais do século XVII / inícios do século XVIII; o que não significa que o minderico tenha surgido nesse período. Refiro-me apenas aos registos escritos. Neste momento estou a efectuar um estudo para tentar datar e reconstruir o mais detalhadamente possível o que se poderia chamar o “proto-minderico”.

De uma forma bastante simplista e reducionista, podemos dizer que com o aumento da popularidade das mantas mindericas no século XVI e o consequente aumento da actividade têxtil, os mindericos começaram a frequentar feiras e mercados por todo o país com um grande espírito corporativista. Para protegerem e defenderem o seu negócio e tirarem mais proveito das comercializações, os cardadores e os comerciantes de Minde começaram a usar o minderico entre si para inteligivelmente discutirem perante estranhos o seu negócio. O minderico era, portanto uma espécie de “língua de defesa” como afirma Abílio Martins. Na sua fase embrionária, o vocabulário do Minderico, presumivelmente baseado em algum substrato arcaico regional, tinha vários lexemas para dinheiro e muitos termos do domínio da produção têxtil. Isto explica-se pelo facto do Minderico, nesta fase, ser essencialmente a linguagem de um grupo sócio-económico específico.

Depois desta fase inicial, e com muita criatividade por parte dos seus falantes, o minderico enriqueceu o seu vocabulário gradualmente. Com o aumento do vocabulário, o minderico alarga também os seus contextos de aplicação, começando a ser usado não só por razões comerciais/de secretismo mas também em contextos da vida social diária. Consequentemente, a comunidade de falantes aumentou e o minderico torna-se um elemento de união e identificação. A partir deste momento, começa a ser usado por todos os grupos sociais, transformando-se na linguagem do quotidiano em Minde, usada em todos os contextos sociais, económicos, culturais e políticos. Além disso, o isolamento geográfico de Minde (a vila situa-se num vale, rodeado pela Serra de Santo António e a Serra dos Candeeiros) foi também um factor importante para o uso e preservação desta variedade linguística única, uma vez que o contacto com as vilas vizinhas era praticamente inexistente.

Penso que não poderemos nem devemos falar de divulgadores do minderico em sentido individual e restrito. Pelo que referi anteriormente, essa divulgação foi conseguida essencialmente pelos seus falantes porque são eles que dão vida a qualquer língua. Não podemos esquecer também a importância que os vários glossários compilados ao longo destes anos tiveram para essa divulgação. Porém, esses são apenas elementos acessórios.

Infelizmente o minderico caiu em desuso, não tanto em meados do século passado mas mais por volta dos anos 70 do século passado. Há vários factores que contribuíram para esse desuso, factores esses que também encontramos noutras comunidades onde existem línguas minoritárias e ameaçadas, como por exemplo:

1) A influência avassaladora do português como língua oficial do ensino, dos media, das instituições publicas;

2) A visão negativa do minderico proveniente de epítetos e classificações como “calão”, maioritariamente impostas de fora, que inconscientemente influenciam a forma como os próprios falantes vêem e vivem a sua língua (uma língua de um grupo sem formação, de certa forma estigmatizado; uma língua apenas associada ao passado, vista como não tendo futuro e que não se adapta às novas realidades – ou seja, uma língua que aparentemente não nos dá vantagens no mercado de trabalho e, por isso, deixou de ser passada aos filhos);

3) Agregado a 2) temos também a perda de identidade comunitária como resultado da constante e intensiva globalização;

4) A falta de ensino acompanhado, didacticamente preparado do minderico nas escolas;

5) O declínio económico de Minde e o êxodo dos seus habitantes para locais fora de Minde onde não se fala o minderico.

Isto para referir apenas alguns desses factores que me parecem mais preponderantes.

8 – O Ministério da Educação está informado do seu trabalho? Se sim, quais os apoios que estão a ser prestados?

O trabalho que tenho estado a desenvolver com o minderico enquadra-se, como já várias vezes salientei, no programa de documentação de línguas ameaçadas da Fundação Volkswagen. Sendo um trabalho de documentação de um património linguístico o objectivo principal é, como tal, a documentação (e não a educação) – a criação de um corpus que mostre no futuro, ao público em geral e à comunidade linguística em particular, o que é o minderico. Nesta fase não seria de esperar qualquer envolvimento do Ministério da Educação. Na fase de revitalização que advém de um projecto desta natureza, e que já iniciei por iniciativa própria, serão feitas as exposições necessárias ao Ministério da Educação e aí esperar-se-á não só o envolvimento mas também o apoio do mesmo. Esse apoio provavelmente só será conseguido mostrando que o minderico é património linguístico nacional e que tem de ser preservado. Para isso é preciso o trabalho e empenho total de todos os falantes “piando à modeia pra diante entre si e com os seus terraios”.

9- Quando termina esta sua primeira estadia em Minde. Quando voltará novamente?

A minha estadia terminou no final de Abril de 2009 mas voltarei de novo a Minde, para a segunda fase de trabalho de campo, em Setembro de 2009.

10 – Na sua ausência, continuarão as aulas da Piação?

Sim, as aulas continuaram com o senhor Carlos Amoroso que, além da sua dedicação pessoal ao minderico, tem dado todo o apoio a este projecto.

Vera Ferreira

7 comentários:

Anónimo disse...

Olá boa noite
Apreciei bastante as explicações dadas pela Dra Vera.
A avaliar por aquilo que ontem se passou no Agrupamento de Minde, penso que a Escola está bastante interessada em não deixar cair no esquecimento o património linguístico herdado.

Vera Ferreira disse...

Mesmo não sabendo o que se passou no Agrupamento de Minde, fico muito contente por saber que a escola está interessada em preservar o minderico. O que precisarem da minha parte estarei a vossa disposição.

Cumprimentos
Vera Ferreira

Anónimo disse...

Na cerimónia de tomada de posse da Directora do Agrupamento, e por se ter considerado pedagogicamente interessante, a acta foi transcrita e lida para todos os presentes -e eram muitos-, também em minderico.
Houve ainda a apresentação de um sketch em minderico que contou com a participação de alguns professores.

Vera Ferreira disse...

Isso é óptimo. Esse é um trabalho fundamental para a revitalização do minderico. Continuem!

Um abraço
Vera Ferreira

Exdrúxulo disse...

As escolas de Minde despertaram para a Piação do Ninhou???

Bem diz o ditado, santos da casa não fazem milagres. Foi preciso duas pessoas, uma do Entroncamento e outra da Batalha pegarem na piação.

Vamos ver o que os senhores professores agora vão ajudar.

Anónimo disse...

Sr exdrúxulo
Você não é exdrúxulo, é QUADRADO!
Os professores ,há alguns anitos atrás, tiveram na escola uma acção de formação sobre o minderico.Sabia?

Anónimo disse...

Nunca é tarde para começar a jordar a piação Exdrúxulo. Muito gosta o pessoal de começar logo com polémicas.Para quê criticar já o empenho da escola.Vamos é dar apoio e não deitar abaixo!!6º planeta às 9 das do bandarra da fusca no CaORG todos os Charais para a classe da Piação